sexta-feira, 12 de agosto de 2016

MERECEU

Mereceu

Pois essa aconteceu na Ilha do Marajó, que, na verdade, nem é uma ilha, é um arquipélago inteiro. Mas deixa eu explicar que o Marajó não é Fernando de Noronha. Tem que dizer porque muita gente pensa que o Marajó é como Fernando de Noronha e não é nem um pouco parecido; digo porque conheço várias cidades do Marajó... ... Tá certo que não conheço Fernando de Noronha, mas diz que lá é só praia deserta e paradisíaca. Enfim, o Marajó é diferente, pronto. Foi no fórum de uma das cidades do Marajó. Tudo bem, vocês devem estar pensando num forunzinho do interior, em que o ventilador fica rodando devagar, e dois ou três funcionários estão ali, se abanando sem ter o que fazer, não é? Pois não é mesmo! É uma correria, mais de trinta funcionários e dois juízes fazendo o trabalho de 5 ou 6. 
 Pois foi lá que aconteceu. 
 Era um caso de violência doméstica, ou, como as pessoas chamam “era um Maria da Penha” (a Maria da Penha original sofreu duas tentativas de homicídio pelo marido, lutou por sua condenação e dezenove anos depois ele foi condenado a oito anos, cumpriu dois e tá aí, soltinho da Silva).
 Mandei chamar o caboclo, que chegou na sala algemado, cara de poucos amigos e olhando pro chão. 
 Depois entrou a vítima. De óculos escuros e pedi que tirasse.
 O caso havia sido há trinta dias, mas quando ela tirou o óculos: Égua da porrada!! (Prá você que não sabe, “égua” é uma espécie de “bah”, ou “barbaridade”. Para os paraenses, o “bah” é o “égua” e o “barbaridade” é o “pai d’égua”, e tem mil utilidades e flexões, mas sobre isso falo outro dia).
 O olho da moça, trinta dias depois, ainda tava roxo e inchado! Ou o cara, que era um caboclo pequeno, meio miúdo, tinha muito mais força do que aparentava, ou acertou exatamente no mesmo lugar, várias vezes.
 Fui olhar o laudo do exame de corpo de delito e tava escrito agressão por instrumento contundente – mão humana. E pra quem não conhece, ainda tem quesitos perguntando se a lesão foi causada por meio insidioso (vai saber o que é isso?) ou cruel. Pois constava: “meio cruel, socos”! 
 O fato é que a vítima estava com aquele olho que fazia a gente querer e não querer olhar ao mesmo tempo.
 Tudo pronto na sala de audiências, defensor público tentando enviar mensagens no celular, promotor olhando o iPad, perguntei: 
 "Sim, tchê, o que te deu para fazer esse estrago?" (ah, esqueci de dizer, sou gaúcho e a vida me trouxe até o Marajó).
 "Não sei, doutor, eu tava porre."
E outra, por aqui não se fala “eu tava DE porre”. É sem preposição mesmo, o sujeito está “porre” como quem está “bêbado”. Fala direto.
"Como é?”, eu perguntei.
"Não lembro, eu tava porre."
Se tem uma coisa que quem me conhece sabe, é que esse negócio de ficar se escondendo da verdade dizendo que não lembra, me deixa furioso. O olho da guria ainda tava uma rodela roxa um mês depois, e o cara não lembra? Tá preso por conta dessa agressão e diz que não lembra? Nesse momento me seguro pra não perguntar se ele tá podendo sentar direito, porque (dizem por aí) de porre não tem dono!
Tentei mais uma vez:
"Olhas, vai ser melhor se me contares o que houve. Me falas o que aconteceu para teres feito isso."
O mal acabado não deu o braço a torcer:
"Eu tava porre, não lembro doutor." E continuava a olhar pro chão.
Nessa altura desisti e perguntei prá vítima:
"Então me diga a senhora: o que houve? Qual o motivo da agressão?"
E agora, ela que parecia réu:
"Sabe doutor, eu não queria falar sobre mmmmmmmm.."
“Hein?"
"Eu não queria, eu que mmmmm.."
"Não estou escutando, faças o favor de falar mais alto!"
E um filetinho de voz mais alto:
"Eu não queria ter que falar sobre isso, doutor, mas é que eu mereci!"
"Égua!" Esse foi o promotor, paraense da gema, que soltou com espanto!

Não insisti. Nós nos olhamos, o promotor, o defensor público e eu, e nem precisou debate. O caboclo saiu solto da audiência!

Era o típico caso: ele não sabia porque havia batido... mas ela sabia por que havia apanhado!

Por Luís Augusto Menna Barreto