quarta-feira, 12 de outubro de 2016

crônica - Kadu e a Corridinha do Círio

Kadu e a corridinha do Círio

(De novo, esta história foi escrita para crianças. Inspirei-me em um fato real - que não está descrito literalmente! Vali-me de licenças literárias. Meu pequeno João, novamente, narrou-me o episódio.  Ficou assim:)

Todo ano tem, na escola, a “Corridinha do Círio”. 
Na época do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, aqui em Belém, a escola faz uns jogos e, para as turmas dos menores, tem a Corridinha do Círio. Em volta do campo de futebol da escola, os professores fazem uma pista de corrida e a gente tem que sair correndo por um lado do campo, passar por trás das traves do gol e voltar pelo outro lado. Todas as turmas até a 4ª serie concorrem e há um campeão por turma. O segundo e terceiro lugares também ganham medalhas. 
Eu sempre corri. Sempre tive o sonho de ver as pessoas aplaudindo quando eu ganhasse. Ou ao menos chegasse até o terceiro lugar. Todo ano eu tentava, mas nunca conseguia. Eu até que sou bem rápido. Mas acho que canso ligeiro, e daí, nunca chego entre os primeiros. Saio na frente, mas antes da metade, muitos já me deixam pra trás. 
Eu queria muito que me aplaudissem uma vez, mas como nunca consegui, esse ano, que é o último pra nossa turma, decidi que não ia participar. 
Falei para a mamãe que eu não queria e ela disse que entendeu. Eu acho que ela ficou um pouco triste… mas também acho que ela ficaria mais triste de ver que não consigo ganhar e que ninguém iria aplaudir minha chegada lá com os últimos. 
O Kadu também não participa. Acho que é por causa do jeito dele, sempre quieto, com aquele jeitinho de que não está olhando pra ninguém, sempre se mexendo como quem dança uma música que só tem na cabeça dele. A mãe dele já nos explicou que ele não participa de muitas atividades porque é artista e sempre pede pra gente ter paciência com ele, que artista é assim mesmo (mas ela fala errado, ela fala “autista”). Daí, quando o pessoal sai correndo ele fica agitado, querendo sair de perto. Quase se esconde atrás da mãe dele. 
Quando chegou a vez da nossa turma, eu fui lá pra perto do Kadu, um pouco pra trás da linha de largada, porque a gente não ia participar, mas tinha que entrar com a turma. Então, todos os outros foram para a linha de largada e eu e o Kadu ficamos pra trás. Eu confesso que, na hora, bateu uma dúvida se eu queria ou não participar. Acho que correr eu queria… o que não queria era chegar lá atrás quando ninguém mais tava nem prestando atenção. 
Fiquei olhando os coleguinhas todos prontos e com aquela gana de vencer. Eu nem notei, mas alguém disse que o Kadu ficou olhando pra mim, com a cabecinha torta, com aquele jeito de artista dele… como se ele tivesse preocupado comigo. 
De repente, o estouro do tiro de partida! Foi uma gritaria imensa. Eu me imaginei ali no meio, mas não fui. Com o estouro do tiro, o Kadu se assustou e deu um passo pra trás. Daí, eu confesso que não sei direito como aconteceu, mas, de repente, eu já tava correndo segurando a mãozinha do Kadu. Começamos a correr de mãos dadas pela pista de corrida! O pessoal já ia dobrando na primeira curva e a gente não tava nem na metade ainda. Só que aconteceu uma coisa incrível: de repente, todo mundo começou a aplaudir nossa corrida! E eu vi que parecia mais forte do que os aplausos de quando chegava o primeiro colocado. E foi assim durante todo o percurso! Acho que a gente quebrou o recorde ao contrário: de mais tempo para completar a prova! Mas corremos todo o tempo de mãos dadas. Quando íamos cruzar a linha de chegada, o Kadu levantou minha mão e chegamos assim, de mãozinhas levantadas.
Foi a coisa mais linda: todo mundo aplaudiu e o Kadu me abraçou e começou a pular abraçado comigo. E todos os coleguinhas que correram vieram se abraçar com a gente e foi a maior bagunça! E deram medalhas para todos da nossa turma!
Naquela noite, eu dormi abraçado com minha medalha! 
Mas lá na hora, depois que ganhamos a medalha, a mãe do Kadu veio sorrindo, mas quase chorando (eu não entendi direito: se ela parecia feliz, como podia estar chorando?) e me deu um abraço bem apertado e agradeceu por eu ter corrido com ele!
Acho que a mãe do Kadu tem algum problema! Ela chora quando está feliz, fala “autista" no lugar de artista e não vê as coisas direito: foi o Kadu que pegou minha mão e saiu correndo! Não fui eu quem levou ele. Foi ele que me levou!


Por Luís Augusto Menna Barreto


sexta-feira, 12 de agosto de 2016

MERECEU

Mereceu

Pois essa aconteceu na Ilha do Marajó, que, na verdade, nem é uma ilha, é um arquipélago inteiro. Mas deixa eu explicar que o Marajó não é Fernando de Noronha. Tem que dizer porque muita gente pensa que o Marajó é como Fernando de Noronha e não é nem um pouco parecido; digo porque conheço várias cidades do Marajó... ... Tá certo que não conheço Fernando de Noronha, mas diz que lá é só praia deserta e paradisíaca. Enfim, o Marajó é diferente, pronto. Foi no fórum de uma das cidades do Marajó. Tudo bem, vocês devem estar pensando num forunzinho do interior, em que o ventilador fica rodando devagar, e dois ou três funcionários estão ali, se abanando sem ter o que fazer, não é? Pois não é mesmo! É uma correria, mais de trinta funcionários e dois juízes fazendo o trabalho de 5 ou 6. 
 Pois foi lá que aconteceu. 
 Era um caso de violência doméstica, ou, como as pessoas chamam “era um Maria da Penha” (a Maria da Penha original sofreu duas tentativas de homicídio pelo marido, lutou por sua condenação e dezenove anos depois ele foi condenado a oito anos, cumpriu dois e tá aí, soltinho da Silva).
 Mandei chamar o caboclo, que chegou na sala algemado, cara de poucos amigos e olhando pro chão. 
 Depois entrou a vítima. De óculos escuros e pedi que tirasse.
 O caso havia sido há trinta dias, mas quando ela tirou o óculos: Égua da porrada!! (Prá você que não sabe, “égua” é uma espécie de “bah”, ou “barbaridade”. Para os paraenses, o “bah” é o “égua” e o “barbaridade” é o “pai d’égua”, e tem mil utilidades e flexões, mas sobre isso falo outro dia).
 O olho da moça, trinta dias depois, ainda tava roxo e inchado! Ou o cara, que era um caboclo pequeno, meio miúdo, tinha muito mais força do que aparentava, ou acertou exatamente no mesmo lugar, várias vezes.
 Fui olhar o laudo do exame de corpo de delito e tava escrito agressão por instrumento contundente – mão humana. E pra quem não conhece, ainda tem quesitos perguntando se a lesão foi causada por meio insidioso (vai saber o que é isso?) ou cruel. Pois constava: “meio cruel, socos”! 
 O fato é que a vítima estava com aquele olho que fazia a gente querer e não querer olhar ao mesmo tempo.
 Tudo pronto na sala de audiências, defensor público tentando enviar mensagens no celular, promotor olhando o iPad, perguntei: 
 "Sim, tchê, o que te deu para fazer esse estrago?" (ah, esqueci de dizer, sou gaúcho e a vida me trouxe até o Marajó).
 "Não sei, doutor, eu tava porre."
E outra, por aqui não se fala “eu tava DE porre”. É sem preposição mesmo, o sujeito está “porre” como quem está “bêbado”. Fala direto.
"Como é?”, eu perguntei.
"Não lembro, eu tava porre."
Se tem uma coisa que quem me conhece sabe, é que esse negócio de ficar se escondendo da verdade dizendo que não lembra, me deixa furioso. O olho da guria ainda tava uma rodela roxa um mês depois, e o cara não lembra? Tá preso por conta dessa agressão e diz que não lembra? Nesse momento me seguro pra não perguntar se ele tá podendo sentar direito, porque (dizem por aí) de porre não tem dono!
Tentei mais uma vez:
"Olhas, vai ser melhor se me contares o que houve. Me falas o que aconteceu para teres feito isso."
O mal acabado não deu o braço a torcer:
"Eu tava porre, não lembro doutor." E continuava a olhar pro chão.
Nessa altura desisti e perguntei prá vítima:
"Então me diga a senhora: o que houve? Qual o motivo da agressão?"
E agora, ela que parecia réu:
"Sabe doutor, eu não queria falar sobre mmmmmmmm.."
“Hein?"
"Eu não queria, eu que mmmmm.."
"Não estou escutando, faças o favor de falar mais alto!"
E um filetinho de voz mais alto:
"Eu não queria ter que falar sobre isso, doutor, mas é que eu mereci!"
"Égua!" Esse foi o promotor, paraense da gema, que soltou com espanto!

Não insisti. Nós nos olhamos, o promotor, o defensor público e eu, e nem precisou debate. O caboclo saiu solto da audiência!

Era o típico caso: ele não sabia porque havia batido... mas ela sabia por que havia apanhado!

Por Luís Augusto Menna Barreto